sábado, 13 de novembro de 2010

Pés no chão


- Um: letra “A”- certo, isso! Dois: “E” – certo, boa! Três: “C” – errado, droga! Como assim “D”? Quatro: “C” – certo, amém! Cinco: “E” – certo, correta. Seis: “D” – certo, graças a Deus! Sete: “B” – certo, acertei! Oito: “A” – errado, mas essa foi capciosa. Nove: “B” – certo! Dez: “E” – de exata!... Quarenta e cinco: “D” - Então... 36 acertos de 45. Oitenta por cento da prova. Média bruta: oitocentos pontos. Com o desvio - padrão iria para setecentos e pouco, dependendo do número de acertos dos candidatos. Até que não foi tão ruim.
- Mãe, mãe! Acertei oitenta por cento das questões no simulado.
- Lara, meus parabéns! A cada dia você fica mais próxima da sua aprovação no vestibular de Direito. Só faltam dois meses, minha filha. Continue estudando e terás o futuro que não conseguimos ter. Mas agora aproveite e me dê uma ajudinha, sua mãe está cansada de ficar nessa cozinha o dia todo! Vê se dá um jeito nessa louça, que ficou acumulada desde o almoço, e uma varridinha na casa, viu? Estou muito desgastada, mas vou agora mesmo pro serviço que seu Tio Alfredo me arrumou para completar o dinheiro de pagar sua escola.
- Tudo bem, mamãe.
Papai também trabalhava, era enfermeiro. Raramente o via em casa, dava plantões de longa duração. Concluiu o curso superior com dificuldades, mas sempre fez o que pôde para me dar o essencial. Vivíamos apertados financeiramente e desde pequena estudei em escola pública, mas, com esforços, meus pais conseguiram me colocar numa escola particular.
Liguei a televisão para acompanhar o noticiário enquanto realizava os afazeres:
- Universidades Federais Públicas do Brasil entram em consenso e decidem estabelecer porcentagem-padrão para as cotas no processo seletivo nas categorias: ensino-público, cor e etnia. A porcentagem será de 50% para todas as Universidades do país e entrará em vigor neste ano.
Atônita, deixei cair o prato que enxaguava. Cuidaria disso depois. Liguei imediatamente para Theves, meu professor-orientador da escola, do qual era muito amiga.
- Alô, professor? É a Lara. O senhor viu a notícia sobre a aderência às cotas, por todas as Universidades Federais do país?
- Olá, Lara. Sim, acabei de ver no noticiário. Infelizmente, as cotas contradizem os supostos “direitos iguais” de uma sociedade. Agora, a concorrência fica muito mais acirrada para os não-detentores desses benefícios.
- Professor, não poderia ser beneficiada, pelo fato de já ter estudado em rede pública, ou pela minha renda?
- Lara, creio que não, porque se você é capaz de pagar uma escola particular, você não tem prioridade como beneficiária. Sei que não é sua realidade, mas sinto muito. Agora é lutar ainda mais para conseguir sua aprovação, filha.
- Ok, professor, agradeço a explicação. Uma boa noite pro senhor.
A menos de dois meses para o vestibular e, apesar de uma preparação desde toda a vida, encontrava-me apreensiva com a notícia. Geralmente, minhas pontuações dos testes e simulados eram maiores do que as necessárias para a aprovação no curso que sempre sonhei: Direito; mas sabia que com 50% de cotas e uma aterrorizante concorrência, talvez seriam insuficientes. Fui terminar de enxaguar os pratos e varrer a casa, o horário da chegada da mamãe aproximava-se.
Passaram-se os dias... - Na escola, comentava-se cada vez mais sobre o vestibular, sobre as universidades e sobre os processos de seleção dos candidatos – passaram logo, dois meses. Estava aí o dia mais esperado dos meus últimos 17 anos. Rezei ao acordar, dei um beijo na minha mãe e no meu pai. Fui andando para o meu local de prova; na mente: o que precisaria desempenhar. Fui confiante, mas humilde, realizar o vestibular.
Ao terminar a prova, tive a sensação de ter dado o máximo de mim. Fiquei satisfeita. Com o vestibular feito, a escola chegava ao fim. Agora precisava de uma aprovação para seguir minha vida de acordo com meus sonhos. Meus pais não tinham condições de pagar um ano de cursinho pré - vestibular para mim, caso não fosse aprovada. O resultado sairia em um mês, aguardaria ansiosamente. Nas férias, procurei ler bons livros – emprestados – e assistir a filmes. Os dias se passaram muito rápido e, finalmente, o resultado havia saído. Fui numa Lan House próxima à minha casa. Chegando lá, acessei o site da minha universidade e cliquei na última lista de aprovados. Procurei desesperadamente pelo meu nome. Em vão. Ele não estava lá. Instintivamente, caí no pranto.
Muitas pessoas perguntavam-me o que havia acontecido e eu, simplesmente, saí correndo em direção à minha casa, com a sensação de destruição. O vento forte contra meu corpo me lembrava as dificuldades pelas quais passei junto à minha família para obter estudos apropriados. A minha velocidade me representava minha força de vontade e dedicação. Os meus pés ao chão e ao ar, repetitivamente, representavam o meu sonhar e o meu acreditar. Meus cabelos saltitantes, que vez por outra tapavam a minha vista, metaforizavam a mais dura realidade. A dura realidade de me privar de enxergar adiante um sonho e de entregá-lo às mãos de alguém que talvez, não o desejasse e, pior, não lutasse tanto para que fosse concretizado, tanto quanto eu. Cheguei em casa. Esta representava o meu amparo, que vinha da convivência e do apoio da minha família. Sentiriam a minha dor como se estivessem na minha própria pele. O telefone tocava. Provavelmente, minha mãe curiosa sobre o resultado. Pensei em não atender, mas à essa altura do campeonato não seria covarde. Atendi ao telefone. “Lara, meus parabéns!”. Perturbada, a voz ecoava na minha mente e não a compreendia ou a reconhecia propriamente. “Como?” – Indaguei. “Sou eu, Theves! Você foi aprovada!” Meu corpo enrijeceu-se. Teria de explicar que ele estava errado: “ Professor, acabo de chegar da Lan House e não encontrei meu nome na última lista de aprovados”; Theves: “Vários alunos cometeram o mesmo erro, você olhou a lista de aprovados do vestibular do ano passado! Tenho a certeza da sua aprovação. Ví o seu nome no jornal!” Novamente, caí no pranto. Não me lembro exatamente o número de vezes que falei “muito obrigada” para ele, mas segundo o próprio, foram muitas.
Agora, tinha uma cabeça erguida que representava um novo enxergar de horizonte; um sorriso, satisfação. Um corpo firme e os pés- no chão: tudo isso não era mais um sonho, apenas. Era pura realidade.

Um comentário:

  1. "O vento forte contra meu corpo me lembrava as dificuldades pelas quais passei junto à minha família para obter estudos apropriados."

    Simplesmente fantástico.

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